TEXTURAS
Relevos da saudade,
Cheiros de sonho e liberdade,
Ventos esquecidos
Sangues jorrados
Entre guerras cultivadas em campos alheios,
Ventos soprados
Por outras vontades e devaneios...
Texturas
De vidas que se queimaram em nome de quê?
Texturas
De gritos revoltados no peito de quem não vê.
Texturas
De perfumes que escorrem na saudade,
Texturas
Que deixou o outro lado da liberdade...
Luisa Abreu
25/04/09
A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
(O OUTRO LADO)
Abril de 1974. Luanda andava vestida de confusão, os seus vestidos finos viraram farrapos de gritos de revolta. Gritos de gente que nem sabia porque gritava. Os seus adornos chamavam-se medo e, poucos eram os que ainda se sentiam seguros por ali. O meu pai teimava em querer ficar e fazer algo positivo por aquela terra que, para ele era grandiosa. Voltar seria morrer. Ao contrário do que ele pensava, ficar, sim... ficar, seria morrer. Dissera-lhe um amigo nosso que era pescador e residente na Praia da Contra-costa. O nosso amigo João que tinha 10 filhos todos pequenos.
Aquela praia era mágica para nós. Beber de um côco acabado de arrancar do coqueiro e, comer côco fresco, partilhando-o com quem gostavamos era soberbo. No meio daquele alvoroço, sabiamos que algo mudaria de vez... sabiamos que as coisas estariam a perder-se mas, ninguém nos dizia o quê, nem porquê. Èramos crianças... eu e os meus irmãos. Mas, estavamos atentos a qualquer reviravolta. Continuavamos a ver no nosso pai a recusa de voltar ao ponto de partida. Ouviamo-lo dizer que ali era a sua terra, que, fora ali que construira tudo e que nunca fizera mal a ninguém para ter agora de abandonar tudo. Entretanto, já se ouviam tiros a estalar pela cidade. Já se ouviam uivos de vingança que, não entendiamos. O meu pai tentou explicar, dentro dos possíveis o que se passava mas,mostrou-se também esperançoso em ficar. Até que um amigo nosso traduziu para português algo que ouvira de Savimbi que, em português dizia que todos poderiamos viver em harmonia e lutar pelo progresso do País e, em kimbondo proclamava a morte dos brancos. Foi uma desilusão estampada na face de meu pai.
Não tardou que se ouvisse o som de bombas a rugirem e de balas uivantes a passarem rapidamente pelas paredes. O meu pai levou-nos a todos para o aeroporto, onde estivemos a dormir debaixo de tendas à espera de vez para voarmos até Lisboa. Entretanto, estavamos protegidos pela tropa que nos ia levar as refeições. Enquanto os adultos mostravam-se nervosos e preocupados, as crianças, como nós, limitavam-se e espairecer andando de bicicleta ou a brincar uns com os outros sempre que era possível. Os dias passaram-se e lá chegou o momento de embarque. Estavamos todos preparados e, avançamos para a porta que nos ia levar para uma cidade desconhecida mas, de que já ouviramos falar algumas vezes. A viagem foi engraçada mas longa. Vimos um filme, ouvimos música e, essencialmente estavamos todos juntos.
Passadas umas horas, lá aterramos no aeroporto de Lisboa. Ao sair do avião o frio envolveu-me de tal forma que me senti enfraquecer. De repente meteram-nos em várias filas, havia tanta gente em volta que tudo parecia confuso e, perdi os sentidos. Quando acordei, estava numa cadeira de rodas já num corredor de hospital. Fui objecto de imensos testes e análises. O meu pai disse-me que me julgaram com Malária ou outra doença africana. Fiquei um mês no hospital onde fui vista e revista e, nada tinha. O que acontecera no aeroporto foi o resultado de um choque térmico, visto que vinha de um país muito quente e, aqui se fazia sentir o oposto. A minha mãe e os meus irmãos seguiram para a Iha da Madeira de onde éramos todos oriundos. O meu pai, ainda perguntou-me se preferia ficar por Lisboa ou, se queria realmente ir para a nossa terra. Claramente disse-lhe que adorava conhecer a terra onde nasci e conhecer a minha família. Assim foi. Ao receber alta seguimos viagem para o Funchal.
Após o vôo lá aterramos. No aeroporto senti que a pronúncia era diferente da que estava habituada mas nada que não me adaptasse. Cheguei à casa da minha avó. Lembro-me de a olhar muitas vezes sem que ela reparasse ou, assim parecesse. Achei-a uma mulher lindíssima. Fiquei contente por ter-nos recebido bem e por ter tido a sorte de a poder conhecer. Os meus pais poupavam-nos aos dissabores de enfrentar enormes filas nos postos do IARN (penso que se escrevia assim) mas, nós sabiamos o que eles e os nossos irmãos mais velhos passavam por lá. Até que ouvimos o meu pai dizer que iria desistir porque aquilo era uma aldrabice pegada e, que nem todos eram assistidos como deveria ser. O meu pai começara entretanto a trabalhar num hotel.
Conforme os dias foram passando, comecei a ter mais consciência da falta que me fazia Luanda e de tudo o que vivera nos últimos dias. Foi como se tivesse rebobinado toda a fita até então. Só então, apercebi-me o quão grave tudo aquilo tinha sido. De como tinha sido mau ver pessoas sucumbirem perante a miséria dos últimos dias. Lembrei-me de algo que julguei já ter esquecido mas, que nos meus sonhos regressava. A figura de uma mulher - vendedora de peixe à porta das casas - que, ao sentir-se traída pelo marido, resolveu apunhalá-lo. Lembro-me de olhar o seu rosto e parecer-me um boneco de cera mas, trazer no peito o buraco da lâmina que lhe tirara a vida. Lembro-me de vê-lo a ser transportado para o hospital enquanto os filhos choravam, os gritos da mulher já desnorteada. As pessoas em volta revoltadas com as tropelias daqueles dias solarengos mas cinzentos. Passou-me pela cabeça a figura de um homem enorme, sem mãos e sem testículos que, pedia repetidamente para o matarem porque já não era um ser humano. A imagem de uma mulher a fugir, em correria, com o filho nas costas e, que o infortúnio deixou cair ao chão morrendo. A agonia da mulher estampada no seu rosto ao ver o seu bebé no chão - tinha batido com a cabeça numa pedra enorme - e o saber que de nada valia voltar para o apanhar. Vê-la a correr continuamente e a olhar para trás com as lágrimas a cair pelo rosto até desaparecer de vista. A figura dos três homens que a presseguiam, também sem desistirem. Eram coisas que me chocaram mas que na altura não entendia, ou nem tinha tido tempo para parar e pensar. Ver um povo matar-se aos poucos e descriminar pessoas da sua própria etnia era algo confuso. Até então julgava que todos viveramos em harmonia e, realmente assim foi. Hoje sei que não era assim no interior de Angola, o que na altura desconhecia de todo. Tinha ouvido falar na guerra de 1961, em tudo o que se gerara em Angola. Cheguei a ver um livro sobre as violências praticadas na época, de parte a parte. Mas imaginava tudo aquilo já muito longe.
Os primeiros dias no Funchal seriam marcados pela adaptação. Foi sentir o impacto de sermos, a priori, tratados como estranhos numa terra onde nasceramos. Não pela família que nos acarinhou mas, pela vizinhança, de onde soltavam-se frases como: "- Andaram a maltratar os pretos agora vêm para cá fazer o quê?, Voltem para África, vão viver com os pretos que andaram a escravizar.” Estas frases caíam como baldes de água fria. Era algo em que não queria acreditar. Nunca vira ninguém ser escravizado onde morava. Tinha colegas na escola que não eram separados por raças... ouvir as coisas serem ditas assim, parecia estranho. Lembro-me de um dia em que resolvi sair de casa em calções para ir para a praia que ficava na rua de baixo "A Barreirinha" , apareceu um grupo de rapazes bem mais velhos que eu que, na altura, tinha 11 anos e chamaram-me prostituta. Contei ao meu pai o sucedido e perguntei o que queria dizer este nome que, por estranho que pareça desconhecia na altura. O meu pai ficou indignado mas explicou que ali não estavam habituados a ver as raparigas de calções e que era tudo muito novo para eles. Dei-me conta que haviam muitas coisas novas, para nós e para eles. Acho que todos se adaptavam às mudanças que se fazia na época. Lembro-me que as meninas não andavam de bicicleta, nem faziam algumas das coisas que eu estava acostumada a fazer com os meus irmãos, brincadeiras próprias de crianças. Haviam separações em muitas coisas. Lembro-me de ser uma pessoa muito observadora e quieta na altura mas que me tornara mais agressiva por me ver obrigada a defender-me constantemente de palavras insultuosas contra as pessoas que, embora nascidas na terra, tinham regressado como eu. Éramos os retornados para toda a gente. Lembro-me que sempre que me defendia de uma agressão de algum colega de escola ouvia uns gritos a chamaram-me retornada, racista, exploradora e, outros nomes que não se encaixavam na minha cabeça. Lembro-me de tornar-me fria e distante. Mas o tempo foi passando. As peças foram-se encaixando. As mudanças fizeram-se a bem ou a mal. Fiz bons amigos e amigas na minha ilha natal. Um ano depois do regresso meu pai falecera mas, desde que chegaramos, assistia à sua desistência diária... ao seu desalento... à sua desilusão. Lembro-me de ter ajudado o meu pai a vestir-se para ir para o hospital... a última vez que o vi em casa... não mais regressou. Entretanto, sentia na minha mãe uma força indiscritível para aguentar a família e equilibrar todos os balanços para que nenhum de nós naufragássemos. Claro que ela sofrera, claro que se desiludiu e debateu mas, rebuscou dentro de si mesma as forças necessárias para proteger-nos e, ajudar-nos a prosseguir mais essa jornada nas nossas vidas.
Entendi que o 25 de Abril não tinha só trazido coisas más. Sim, não fora muito positivo para quem estava do outro lado do oceano. Não tinha sido feito a pensar em quem lá estava, ficaria, ou voltaria, decididamente. No entanto, compreendo que Portugal necessitava da revolução dos cravos para se libertar de muitas amarras.
Hoje, observando tudo de longe. Sinto que muita coisa se fez mal, mesmo em Portugal. Destruíu-se muitas coisas belas que poderiam ser aproveitadas e transformadas a favor do país. Digo isto porque conheci alguns locais que hoje poderiam ser um luxo a partilhar e que foram destruídos por pertencerem a gente que abraçava na altura, o sistema da ditadura. Penso no entanto, que poderia-se ter combatido o que estava mal mas, dar continuidade ao que já estava feito de forma positiva. Lembro-me, por exemplo de ver na Praia da Fonte da Telha, na margem sul do tejo uma zona de piscinas muito linda mas muito destruída também que, acabou por ser tapada por areal. Era algo interessante e, onde eu adorava ir. Hoje já não existe senão em fotografias do meu album ou, de quem como eu, gostava de lá ir. Como este haverão outros tantos exemplos que não me vou debruçar agora. As coisas passaram-se da forma que se passaram. Penso que todos fizeram o que consideraram melhor. Uns perderam, outros ganharam... uns aprenderam e outros também não... o importante é poder sempre seguir em frente agradecendo tudo o que se viveu e aprendeu.
Isto é apenas um cheiro, por alto, de coisas passadas que me surgiram devido ao facto de ouvir o fogo de artifício estalar e festejar mais um 25 de Abril na nossa vida. (...)
Luisa Abreu
25/04/09
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